Todo mundo é algo-sexual: Interconexões entre sexo, sexualidade e política públicas
Desde
os mais remotos tempos as interações entre os indivíduos são condicionadas por
múltiplas dimensões que envolvem interesses em comum, questões relacionadas a evolução
das espécies como a procriação e a proteção, e até questões mais “sentimentais”
como a atração, o desejo, o afeto e o amor. Entretanto, é muito comum
observarmos nos mais variados campos de discussão, na família ou mesmo nas
redes sociais que quando se trata de relações afetivas e sua multiplicidade de
possibilidades e significados é possível encontrar declarações preconceituosas,
conteúdos ofensivos, desinformação (Fake
News), e por vezes desconhecimento.
Não
é diferente quando se exporta tais comentários ao campo da saúde, visto que
ainda é preocupante a quantidade de profissionais e estudantes que desconhecem
questões como a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, o processo Transexualizador no Sistema
Único de Saúde (SUS), a adoção do nome social nos mais variados espaços de
atendimento e assistência nos sistemas público e privado de saúde e outras
medidas relacionadas ao público LGBT+. Adota-se nesse texto está nomenclatura
pois ela abarca a impossibilidade de tratar as quase infinitas denominações de
gênero existentes ressaltando que estas políticas devem ser entendidas como
também destinadas ao público intersexual, aos assexuais e demaisconceituações (BRASIL,
2013; DAWSON, 2015; POPADIUK et al., 2017).
Como
relatado por Dawson (2015), ainda é muito deficitária a discussão no sistema
educacional mundial sobre as questões relacionadas ao sexo e sexualidade,
constituindo tabus praticamente concretados no imaginário popular e que ainda
podem ser percebidos no século XXI, dessa forma a questão LGBT+ parece “uma
invasão alienígena” como dito pelo autor inglês e quando tratada em espaços de
visibilidade como a televisão, a política e a saúde criam-se mitos e a
consolidação de estigmas e estereótipos que na maioria dos casos não condizem
com a realidade.
Assim, gênero se refere a uma prática,
posicionamento ou deliberação orientada de maneira social com ou sobre o corpo,
que não pretende negar aspectos biológicos e culturais, porém recoloca o debate
sobre as relações e interações entre os sujeitos de maneira não determinista e
assim plurificada, não se limitando as relações entre sexos. Já este segundo termo está muito mais relacionado ao aspecto
biológico apresentado pelos indivíduos não levando em consideração os papeis do
feminino e do masculino na sociedade e se tratando mais diretamente a
copulação, reprodução, hormônios e temas correlatos. Por fim, a sexualidade se refere ao agregado de
significados referentes as formas de interações entre os seres, sua forma de
ser no mundo, suas manifestações corporais, afetivas e culturais, abrangendo
situações que de forma transversal interagem com questões sociais,
biológico-hormonais e de autodescobrimento, constituindo assim um campo de
subjetividade e individualidade próprio.
Portanto,
independente de nomenclatura todos os sujeitos apresentam “algo sexual”, seja
na forma de falar, na posição política ou na maneira com a qual manifesta
afetividade para com outros. Estabelecido tais aspectos algumas indagações
surgem de maneira espontânea sobre o papel e as relações que os gêneros
apresentam na sociedade, como estes podem ser percebidos e se os mesmos exercem
de maneira saudável e livre seus direitos constituídos? Acredita-se que tais
respostas não são nada animadoras, devido a aspectos culturais como o
patriarcalismo, a cultura de violência, a estigmatização de populações e o
acirramento e polarização das discussões políticas no contexto atual,
demonstra-seum cenário de desigualdades crescentes, onde, por vezes, pessoas
que exercem o mesmo trabalho, por exemplo, têm um salário percentualmente menor
pelo simples fato de não serem homens heterossexuais (cis gênero), mesmo com avanços significativos no processo de
trabalho e a conquista de espaços pelo público feminino e LGBT+ ainda é, na
maioria das vezes, socialmente percebido com estranheza quando estes indivíduos
ocupam espaços de protagonismo sendo insultados e vítimas dos mais variados
tipos de violência (DAWSON, 2015; LOURO, 1997).
Historicamente
a luta pelos direitos LGBT+ é marcada por movimentos de direitos humanos muito
expressivos mundialmente, sendo os movimentos Norte-americano e Inglês os mais
reconhecidos.Em particular no Brasil se observa que estas lutas estão muito
clarificadas entre as décadas de 1990 e 2000 em que predominou uma visão
progressista evidente em movimentos como o Brasil sem Homofobia, antes a
criação da Associação de Travestis e Liberados do Rio de Janeiro, a discussão
de temas trazidos pelo movimento LGBT+ na 13ª Conferência Nacional de Saúde, a
1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT’s que
culminaram na construção da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (PNSILGBT),
marcando estas problemáticas como fundamentais na compreensão de saúde deste público
e reconhecendo questões como a identidade de gênero, a violência e a discriminação
vivenciadas pelos mesmos como determinantes sociais em saúde significantes (BRASIL,
2013; POPADIUK et al., 2017).
Quando
novamente é direcionado olhar para o sistema de saúde e as políticas públicas
nele desenvolvidas, em especial a PNSILGBT, ainda existe um paradigma muito marcante
no que se refere ao atendimento de públicos em vulnerabilidade social e
minorias sexuais e de gênero.O SUS apresenta iniciativas pontuais que visam
atender as múltiplas particularidades vivenciadas pelo sistema, ações
educativas desenvolvidas em parcerias com instituições de ensino ofertadas
gratuitamente pela internet, a construção de programas e políticas que visem direcionar
os cuidados a populações distintas ressaltando a clínica ampliada e a
consolidação de práticas socialmente significantes e o uso de tecnologias
cuidativo-educacionais para a efetivação destas ações. Entretanto estas carecem
de articulação para sua aplicação no campo prático de vivência e atividade de
profissionais, estudantes, investigadores e usuários, e na maioria dos casos
são insuficientes, pois não são absorvidas pelos gestores não possuindo
continuidade ou sendo precarizadas ao ponto de se tornarem insustentáveis ou
pouco efetivas (BRASIL, 2013; CORRÊA, 2007)
Recentemente
novas abordagens e o número maior de discussões sobre estas temáticas têm
trazido frutos muito positivos na questão de combate à discriminação de gênero,
a exemplo o seminário sobre Travestilidade e Transexualidade no SUS, o uso de
fichas de notificação de violência com campos de preenchimento destinados a
orientação sexual e identidade de gênero e a luta pela criminalização da
violência contra o público LGBT.
Tais
medidas fortificam os movimentos sociais e empoderam a população sobre essas
problemáticas, reconhecendo o papel do sistema de saúde e do processo
legislativo como fundamentais na superação e enfrentamento do preconceito,
porém ainda é notório o distanciamento do poder público sobre estas discussões
tratando o tema de maneira superficial. Também se percebe a dificuldade de
tratar tais aspectos na educação, os tabus ainda permeiam o cotidiano e
assuntos relacionados a sexo, sexualidade e gênero são geradores de muitas polêmicas.
Por
fim é preciso retomar algumas ponderações feitas anteriormente, primeiro, as
interações humanas são marcadas pelo afeto entre os indivíduos e esse afeto não
pode ser condicionado a uma única prática, entender sexo, sexualidade e gênero
como coisas irrelevantes é estar fadado as limitações e assim cegar os sujeitos
quanto a realidade e a sua multiplicidade de orientações. Deve-se partir dessa
compreensão na consolidação de práticas em saúde pautadas pelo respeito a
diversidade de forma a consolidar o papel social dos agentes em saúde como
multiplicadores de ações construtivas, significativas e sobretudo que
possibilitem mudar a realidade dos indivíduos quanto a autoaceitação tornando estes
protagonistas da sua vida, fornecendo espaços onde possam se expressar
livremente conforme seus direitos constituídos.
Entende-se
que todos os sujeitos são seres sexuais que se manifestam a partir desta
dimensão e assim não pode ser relegado a minorias sexuais ações
cuidativo-educacionais que não abarquem as suas peculiaridades, cabe aos
profissionais, investigadores e estudantes, moldar as políticas públicas conforme
o contexto e a realidade em que vivem, compreendendo tais medidas como caminhos
que apresentam interconexões com a realidade sem significar que devem morrer na
letra fria do texto, da portaria ou do decreto, pelo contrário, devem ser
trazidas a “vida” na forma de ações, devem se tornar verbo, para que seus
significados possam ser vivenciados.
Além
disso, em um contexto de disputas de narrativas e a evidente intenção de
fragilizar as conquistas sociais de LGBT+, mulheres e outras minorias é
necessário se manter vigilante, combater a desinformação com dados, construir
pontes entre o senso comum e as ciências da saúde a fim de consolidar os
direitos destas minorias, utilizar a comunicação e educação em saúde como ferramentas
para combater o preconceito e a discriminação e tomar as ambivalências
inerentes aos contextos como essenciais na construção de uma prática em saúde
resolutiva e atenta, utilizando seu processo de trabalho para a superação de
estigmas, estereótipos e preconcepções.
Referências:
BRASIL, Ministério
da Saúde. Política Nacional de Saúde
Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília,
DF: Ministério da Saúde, 2013.
CORRÊA, S. O
percurso global dos direitos sexuais: entre “margens” e “centros”. Bagoa: revista de estudos gays: EDUFRN.
v. 1, n. 1, 2007.
DAWSON, J. Este livro é gay. São Paulo, SP: WMF
Martins Fontes, 2015.
LOURO, G. L.Gênero, sexualidade e educação. Uma
perspectiva pós-estruturalista.Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
POPADIUK, G. S;
OLIVEIRA, D. C; SIGNORELLI, M. C. A Política Nacional de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuaise Transgêneros (LGBT) e o acesso ao
ProcessoTransexualizadorno Sistema Único de Saúde (SUS): avanços e desafios. CienSaude Colet. v. 22, n. 5. 2017.
Texto elaborado
pelo acadêmico de enfermagem Danilo Paulo Lima da Silva com a orientação do docente
Dr. Marcelo Costa Fernandes.
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