O isolamento social e a violência contra a mulher


          Ao passo em que milhões de pessoas no mundo todo estão permanecendo em isolamento em suas residências, a fim de achatar a curva de crescimento do número de contaminados com o Sars-Cov-2, mulheres que sofrem abusos domésticos estão particularmente vulnerabilizadas. Não ao vírus, e sim à violência.

Coronavírus: GDF reforça combate à violência doméstica durante ...
Fonte: https://www.politicadistrital.com.br/wp-content/uploads/2020/03/Mulher.jpg


          O Brasil conquistou leis proclamadas dentre as melhores do mundo para a defesa das mulheres, mas ao mesmo tempo permanece recordista em índices de violência. Apesar dos esforços e da maior conscientização da sociedade, a violência se mantém estável e crônica. O ingresso da Lei Maria da Penha no cenário jurídico promoveu uma ruptura paradigmática tanto quanto à sua formulação quanto às mudanças legais introduzidas.
          Após mais de uma década de vigência, estudos apontam diversos obstáculos para a sua implementação, especialmente relacionados às medidas protetivas de urgência, conforme recentes pesquisas indicam. Observa-se que a lógica da centralidade da mulher vem sendo subvertida pela lógica do sistema de justiça penal tradicional.
          Tendo em vista a centralidade que a violência contra a mulher assumiu no debate público da sociedade brasileira, bem como os desafios para implementar políticas públicas consistentes para reduzir este enorme problema, causa preocupação, por exemplo, a flexibilização em curso da posse e porte de armas de fogo no Brasil.
Até dezembro de 2019 eram conhecidas seis espécies de coronavírus com potencial infeccioso (HCoV-229E, HCoV-NL63, HCoV-OC43, HCoV-HKU1, MERS-CoV e SARS-CoV), tendo ampliação para sete em dezembro de 2019 com o SARS-CoV-2 que teve origem em Wuhan, na China, e rapidamente se propagando para além de suas fronteiras, tornando-se condição de Emergência de Saúde Pública de Preocupação internacional, e desde então vem provocando mudanças extremas na dinâmica social, econômica e demográficas do mundo inteiro.
Uma das medidas de combate a esse novo vírus é o isolamento domiciliar, uma medida não farmacológica, que vem contribuindo para diminuição da transmissibilidade do vírus. Com o slogan “Fique em casa” as pessoas são orientadas a permanecerem em suas residências o máximo de tempo possível.
Ao passo em que milhões de pessoas no mundo todo estão permanecendo em isolamento em suas residências, a fim de achatar a curva de crescimento do número de contaminados com o Sars-Cov-2, mulheres que sofrem abusos domésticos estão particularmente vulnerabilizadas. Não ao vírus, e sim à violência.
          A necessidade de se passar dias, semanas ou meses na presença de um parceiro abusivo também inclui um importante fator emocional. E, infelizmente, esse é o cenário que o confinamento está trazendo. Em países como os Estados Unidos, diversos abrigos estão sendo criados para mulheres que vivem em situações de risco, principalmente devido à violência doméstica.
          Na China, uma Organização Não Governamental (ONG) chamada Equality, dedicada a combater a violência contra as mulheres sediada em Pequim, notou um aumento no número de chamadas em sua linha de ajuda às vítimas desde o início de fevereiro, quando foi decretado o confinamento na província de Hubei, que, naquele momento, era o epicentro da pandemia.
       Na Europa, esse aumento também é percebido. Na Espanha, o telefone disponibilizado para denúncias de violência doméstica registrou um aumento de 18% nas ligações nas primeiras duas semanas de isolamento, em comparação ao mesmo período do mês anterior. A ONG Fundación Ana Bella, encabeça o movimento de combate a esse aumento dos abusos. Já na França, o registro foi de um aumento de 30% das denúncias, segundo o Ministro do Interior Cristophe Castaner.
          Segundo Herman (2005), os métodos de domínio psicológico e físico utilizados por indivíduos que abusam de mulheres e de crianças são semelhantes aos utilizados por sequestradores com seus reféns, tornando ainda mais evidente que a situação de confinamento aumenta os índices de violência em suas diversas formas.  
          No Brasil, uma das consequências diretas dessa situação, além do aumento dos casos de violência, tem sido a diminuição das denúncias, uma vez que em função do isolamento muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazê-la ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro. Apesar da aparente redução, os números não parecem refletir a realidade, mas sim a dificuldade de realizar a denúncia durante o isolamento.

Quadro 1: Registos de boletins de ocorrência de violência doméstica (lesão corporal dolosa).
Lesão corporal dolosa decorrente de violência doméstica
UF
Março de 2019
Março de 2020
Variação (%)
Rio Grande do Sul
1.925
1.744
-9,4
Rio Grande do Norte
287
385
34,1
Pará
607
527
-13,2
Mato Grosso
953
744
-21,9
Ceará
1.924
1.364
-29,1
Acre
14
10
-28,6
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
          Nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), o padrão de diminuição se repetiu em todas as categorias, violência doméstica, ameaças e estupro e estupro de vulnerável. O estado do Rio Grande do Norte foi a única unidade da federação que apresentou aumento em todas as categorias pesquisadas.
          Mesmo com essa diminuição das denúncias, os fatos que corroboram com a hipótese de crescimento da violência doméstica são os de feminicídios e de atendimentos pela Polícia Militar no 190 de violência doméstica. Estes registraram aumentos no período de isolamento, de março a abril de 2020.
          Os registros oficiais corroboram a pesquisa no universo digital, que mostra aumento de 431% nos relatos de brigas entre vizinhos em rede social entre fevereiro e abril de 2020; universo de 52 mil menções contendo algum indicativo de briga entre casais vizinhos realizadas entre fevereiro e abril. Uma busca com foco apenas nas mensagens que indicavam a ocorrência de violência doméstica resultaram em 5.583 menções.
          Um dos aspectos evidenciados nas pesquisas e que se mostra um padrão em muitos países que enfrentam a Covid-19 é que os confinamentos são instaurados sem um estudo prévio sobre os índices de violência doméstica, com isso esses índices aumentam e o governo parte para medidas de emergência como a disponibilização de quartos de hotéis para as vítimas, medida vista na Itália, na França e na Espanha.
          Além disso, o recurso a aplicativos online também está sendo adotado pela Espanha, que lançou um serviço específico no WhatsApp para mulheres presas em casa, que podem também solicitar em farmácias alertas de emergência através de uma “palavra-código” - “Máscara 19” - para acionar as autoridades. Nos EUA, foi criado um acesso remoto para registrar pedidos de proteção contra agressores por telefone ou e-mail e as linhas nacionais de denúncia a violência doméstica continuam em funcionamento.
          Embora a quarentena seja a medida mais segura, necessária e eficaz para minimizar os efeitos diretos da Covid-19, o regime de isolamento tem imposto uma série de consequências não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica. Sem lugar seguro, elas estão sendo obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar junto a seu agressor, muitas vezes em habitações precárias, com os filhos e vendo sua renda diminuída.
          Além disso, ressalta-se a importância da Atenção Primária à Saúde, principalmente na pessoa do Agente Comunitário de Saúde, devido à sua proximidade com a população, mas também por enfermeiros e médicos, que estão respaldados pelos órgãos legais e por seus conselhos profissionais a realizarem atendimentos à distância durante o período de pandemia. Caso a equipe já possua uma listagem das mulheres vítimas ou com risco de sofrerem violência, é recomendado o seu acompanhamento por essas vias.
            Diante das evidências trazidas pelos dados analisados e das experiências de outros países aqui relatadas, parecem ser linhas de atuação importantes neste contexto de pandemia (que podem ser legados para o período posterior à crise):
        Diversificar os canais possíveis para denúncias das mulheres: telefone, online, mas também em serviços essenciais, como farmácias e supermercados, que não estão fechados por conta da pandemia;
      Criação de canais nos quais vizinhos e familiares possam denunciar, com o desenvolvimento de protocolos de verificação destas denúncias que não coloquem as mulheres em maior risco;
        Criação de campanhas de divulgação dos serviços destinados à proteção das mulheres, mas também encorajando a sociedade a olhar para esse problema e denunciar casos de violência;
        Garantia de resposta rápida das autoridades para a proteção da mulher, seja para retirar o autor de violência de dentro de casa ou para colocar a mulher em local seguro, como um quarto de hotel, pelo período que durar o isolamento social;
        Reforçar a articulação das redes locais de proteção à mulher, em especial as que envolver setor público e sociedade civil organizada;
        Preparar estabelecimentos comerciais, por meio de campanhas educativas e outros, para lidarem com mulheres vítimas de violência, seja prestando informação, seja prestando apoio, colocando-as em contato com autoridades;
        Criação de campanhas voltadas para condomínios residenciais, para que os vizinhos se solidarizem e interfiram caso presenciem situações de violência.

     Referências
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 12 ed. São Paulo: FBSP, 2018.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no brasil. 2 ed. São Paulo: FBSP, 2019.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. 1 ed. São Paulo. FBSP, 2020.

GUPTA, A. H.; STAHL, A. For Abused Women, a Pandemic Lockdown Holds Dangers of Its Own. The New York times, NY, 2020. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/03/24/us/coronavirus-lockdown-domestic-violence.html>. Acesso em: 21 de maio de 2020.

HERMAN, J. L. Justice from the victim’s perspective. Violence against women, v. 11, n. 5, p. 571-602, 2005.

OWEN, L. Coronavirus: five ways virus upheaval is hitting woman in Asia. BBC News, Asia, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-asia-51705199>. Acesso em: 21 de maio de 2020.

PASINATO, W. Por Um Resgate Da Trajetória Feminista: Maria Da Penha. Rev. bras. segur. pública| São Paulo, v. 11, n. 1, p. 98-108, 2017.

SOEIRO, R. E. et al. Atenção Primária à Saúde e a pandemia de COVID-19: reflexão para a prática. InterAmerican Journal of Medicine and Health, v. 3, 2020.

TAUB, A. A new covid-19 crisis: domestic abuse rises worldwise. The New York Times, NY, 2020. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2020/04/06/world/coronavirus-domestic-violence.html>. Acesso em: 21 de maio de 2020.

THE GUARDIAN. In quarantine with an abuser: surge in domestic violence reports linked to cornavirus. The Guardian, 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violence>. Acesso em: 21 de maio de 2020.

Texto produzido pelo Acad. de Medicina Antônio Wellington Grangeiro Batista de Freitas, sob orientação da professora Mª Maria Berenice Gomes Nascimento.

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