O isolamento social e a violência contra a mulher
Ao passo em que milhões de pessoas no mundo todo estão permanecendo em isolamento em suas residências, a fim de achatar a curva de crescimento do número de contaminados com o Sars-Cov-2, mulheres que sofrem abusos domésticos estão particularmente vulnerabilizadas. Não ao vírus, e sim à violência.
O
Brasil conquistou leis proclamadas dentre as melhores do mundo para a defesa
das mulheres, mas ao mesmo tempo permanece recordista em índices de violência.
Apesar dos esforços e da maior conscientização da sociedade, a violência se
mantém estável e crônica. O ingresso da Lei Maria da Penha no cenário jurídico promoveu
uma ruptura paradigmática tanto quanto à sua formulação quanto às mudanças
legais introduzidas.
Após mais de
uma década de vigência, estudos apontam diversos obstáculos para a sua
implementação, especialmente relacionados às medidas protetivas de urgência,
conforme recentes pesquisas indicam. Observa-se que a lógica da centralidade da
mulher vem sendo subvertida pela lógica do sistema de justiça penal
tradicional.
Tendo
em vista a centralidade que a violência contra a mulher assumiu no debate
público da sociedade brasileira, bem como os desafios para implementar
políticas públicas consistentes para reduzir este enorme problema, causa
preocupação, por exemplo, a flexibilização em curso da posse e porte de armas
de fogo no Brasil.
Até dezembro de
2019 eram conhecidas seis espécies de coronavírus com potencial infeccioso
(HCoV-229E, HCoV-NL63, HCoV-OC43, HCoV-HKU1, MERS-CoV e SARS-CoV), tendo
ampliação para sete em dezembro de 2019 com o SARS-CoV-2 que teve origem em
Wuhan, na China, e rapidamente se propagando para além de suas fronteiras,
tornando-se condição de Emergência de Saúde Pública de Preocupação
internacional, e desde então vem provocando mudanças extremas na dinâmica
social, econômica e demográficas do mundo inteiro.
Uma das medidas
de combate a esse novo vírus é o isolamento domiciliar, uma medida não farmacológica,
que vem contribuindo para diminuição da transmissibilidade do vírus. Com o slogan
“Fique em casa” as pessoas são orientadas a permanecerem em suas
residências o máximo de tempo possível.
Ao passo em que
milhões de pessoas no mundo todo estão permanecendo em isolamento em suas
residências, a fim de achatar a curva de crescimento do número de contaminados
com o Sars-Cov-2, mulheres que sofrem abusos domésticos estão particularmente
vulnerabilizadas. Não ao vírus, e sim à violência.
A
necessidade de se passar dias, semanas ou meses na presença de um parceiro
abusivo também inclui um importante fator emocional. E, infelizmente, esse é o
cenário que o confinamento está trazendo. Em países como os Estados Unidos,
diversos abrigos estão sendo criados para mulheres que vivem em situações de
risco, principalmente devido à violência doméstica.
Na
China, uma Organização Não Governamental (ONG) chamada Equality,
dedicada a combater a violência contra as mulheres sediada em Pequim, notou um
aumento no número de chamadas em sua linha de ajuda às vítimas desde o início
de fevereiro, quando foi decretado o confinamento na província de Hubei, que,
naquele momento, era o epicentro da pandemia.
Na
Europa, esse aumento também é percebido. Na Espanha, o telefone disponibilizado
para denúncias de violência doméstica registrou um aumento de 18% nas ligações
nas primeiras duas semanas de isolamento, em comparação ao mesmo período do mês
anterior. A ONG Fundación Ana Bella, encabeça o movimento de combate a
esse aumento dos abusos. Já na França, o registro foi de um aumento de 30% das
denúncias, segundo o Ministro do Interior Cristophe Castaner.
Segundo
Herman (2005), os métodos de domínio psicológico e físico utilizados por
indivíduos que abusam de mulheres e de crianças são semelhantes aos utilizados
por sequestradores com seus reféns, tornando ainda mais evidente que a situação
de confinamento aumenta os índices de violência em suas diversas formas.
No
Brasil, uma das consequências diretas dessa situação, além do aumento dos casos
de violência, tem sido a diminuição das denúncias, uma vez que em função do
isolamento muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para fazê-la ou têm
medo de realizá-la pela aproximação do parceiro. Apesar da aparente redução, os
números não parecem refletir a realidade, mas sim a dificuldade de realizar a
denúncia durante o isolamento.
Quadro 1: Registos de boletins de
ocorrência de violência doméstica (lesão corporal dolosa).
Lesão
corporal dolosa decorrente de violência doméstica
|
|||
UF
|
Março
de 2019
|
Março
de 2020
|
Variação
(%)
|
Rio Grande do Sul
|
1.925
|
1.744
|
-9,4
|
Rio Grande do Norte
|
287
|
385
|
34,1
|
Pará
|
607
|
527
|
-13,2
|
Mato Grosso
|
953
|
744
|
-21,9
|
Ceará
|
1.924
|
1.364
|
-29,1
|
Acre
|
14
|
10
|
-28,6
|
Fonte:
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
Nos
dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), o padrão de diminuição
se repetiu em todas as categorias, violência doméstica, ameaças e estupro e
estupro de vulnerável. O estado do Rio Grande do Norte foi a única unidade da
federação que apresentou aumento em todas as categorias pesquisadas.
Mesmo
com essa diminuição das denúncias, os fatos que corroboram com a hipótese de
crescimento da violência doméstica são os de feminicídios e de atendimentos
pela Polícia Militar no 190 de violência doméstica. Estes registraram aumentos
no período de isolamento, de março a abril de 2020.
Os
registros oficiais corroboram a pesquisa no universo digital, que mostra
aumento de 431% nos relatos de brigas entre vizinhos em rede social entre
fevereiro e abril de 2020; universo de 52 mil menções contendo algum indicativo
de briga entre casais vizinhos realizadas entre fevereiro e abril. Uma busca
com foco apenas nas mensagens que indicavam a ocorrência de violência doméstica
resultaram em 5.583 menções.
Um
dos aspectos evidenciados nas pesquisas e que se mostra um padrão em muitos
países que enfrentam a Covid-19 é que os confinamentos são instaurados sem um estudo
prévio sobre os índices de violência doméstica, com isso esses índices aumentam
e o governo parte para medidas de emergência como a disponibilização de quartos
de hotéis para as vítimas, medida vista na Itália, na França e na Espanha.
Além
disso, o recurso a aplicativos online também está sendo adotado pela Espanha,
que lançou um serviço específico no WhatsApp para mulheres presas em casa, que
podem também solicitar em farmácias alertas de emergência através de uma
“palavra-código” - “Máscara 19” - para acionar as autoridades. Nos EUA, foi
criado um acesso remoto para registrar pedidos de proteção contra agressores
por telefone ou e-mail e as linhas nacionais de denúncia a violência doméstica
continuam em funcionamento.
Embora
a quarentena seja a medida mais segura, necessária e eficaz para minimizar os
efeitos diretos da Covid-19, o regime de isolamento tem imposto uma série de
consequências não apenas para os sistemas de saúde, mas também para a vida de
milhares de mulheres que já viviam em situação de violência doméstica. Sem
lugar seguro, elas estão sendo obrigadas a permanecer mais tempo no próprio lar
junto a seu agressor, muitas vezes em habitações precárias, com os filhos e
vendo sua renda diminuída.
Além
disso, ressalta-se a importância da Atenção Primária à Saúde, principalmente na
pessoa do Agente
Comunitário de Saúde, devido à sua proximidade com a população, mas também por
enfermeiros e médicos, que estão respaldados pelos órgãos legais e por seus
conselhos profissionais a realizarem atendimentos à distância durante o período
de pandemia. Caso a equipe já possua uma listagem das mulheres vítimas ou com
risco de sofrerem violência, é recomendado o seu acompanhamento por essas vias.
Diante
das evidências trazidas pelos dados analisados e das experiências de outros
países aqui relatadas, parecem ser linhas de atuação importantes neste contexto
de pandemia (que podem ser legados para o período posterior à crise):
•
Diversificar os canais
possíveis para denúncias das mulheres: telefone, online, mas também em serviços
essenciais, como farmácias e supermercados, que não estão fechados por conta da
pandemia;
• Criação de canais nos
quais vizinhos e familiares possam denunciar, com o desenvolvimento de
protocolos de verificação destas denúncias que não coloquem as mulheres em
maior risco;
•
Criação de campanhas
de divulgação dos serviços destinados à proteção das mulheres, mas também
encorajando a sociedade a olhar para esse problema e denunciar casos de
violência;
•
Garantia de resposta
rápida das autoridades para a proteção da mulher, seja para retirar o autor de
violência de dentro de casa ou para colocar a mulher em local seguro, como um
quarto de hotel, pelo período que durar o isolamento social;
•
Reforçar a articulação
das redes locais de proteção à mulher, em especial as que envolver setor
público e sociedade civil organizada;
•
Preparar
estabelecimentos comerciais, por meio de campanhas educativas e outros, para
lidarem com mulheres vítimas de violência, seja prestando informação, seja
prestando apoio, colocando-as em contato com autoridades;
•
Criação de campanhas
voltadas para condomínios residenciais, para que os vizinhos se solidarizem e
interfiram caso presenciem situações de violência.
Referências
FÓRUM
BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
12 ed. São Paulo: FBSP, 2018.
FÓRUM
BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Visível e invisível: a vitimização de
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FÓRUM
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Covid-19. 1
ed. São Paulo. FBSP, 2020.
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Abused Women, a Pandemic Lockdown Holds Dangers of Its Own. The New York
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HERMAN, J. L.
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Acesso em: 21 de maio de 2020.
PASINATO, W. Por Um Resgate Da
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SOEIRO, R. E. et al.
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THE GUARDIAN. In quarantine with an abuser: surge in
domestic violence reports linked to cornavirus. The
Guardian, 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/coronavirus-quarantine-abuse-domestic-violence>.
Acesso em: 21 de maio
de 2020.
Texto produzido pelo Acad. de Medicina
Antônio Wellington Grangeiro Batista de Freitas, sob orientação da professora
Mª Maria Berenice Gomes Nascimento.
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