SIGILO E PRIVACIDADE DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV/AIDS: um enfoque na lei 14.289/22

 Sigilo e privacidade no contexto de cuidado às Pessoas Vivendo com HIV/Aids

O sigilo e a privacidade das informações de saúde são aspectos fundamentais da ética profissional e da proteção dos direitos dos pacientes. Preservar esses princípios significa garantir o respeito à dignidade da pessoa humana e promover uma relação de confiança entre profissionais e usuários do sistema de saúde. No caso das Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), essa proteção se torna ainda mais relevante, considerando o estigma e a discriminação historicamente associados à infecção e adoecimento (Villas-Bôas, 2015).

Nesse contexto, é importante considerar que a proteção da privacidade das informações de saúde deve ser pensada não apenas em termos individuais, mas também em sua dimensão coletiva. De acordo com a literatura internacional, a abordagem da confidencialidade precisa ser sensível às especificidades culturais e sociais de cada país (Silva Junior; Araújo; Nascimento, 2017). No Brasil, embora a legislação estabeleça garantias formais, sua efetividade depende da infraestrutura dos serviços e da conduta ética dos profissionais de saúde. Assim, por exemplo, o compartilhamento de informações deve ocorrer com responsabilidade e apenas quando for realmente necessário para o cuidado (Junges et al., 2015).

Além disso, surge uma importante questão ética envolvendo a comunicação do diagnóstico a terceiros, sobretudo aos parceiros sexuais. Embora exista o imperativo de proteger a saúde pública, a quebra do sigilo só pode ser justificada diante de risco real e iminente, devendo ser adotada apenas após tentativas de conscientização e diálogo com o paciente (Lins et al., 2022; Oliveira, 2018). Essa conduta, quando necessária, exige extremo cuidado, uma vez que pode gerar implicações jurídicas e morais tanto para o profissional quanto para o paciente (Zanco; Gonçalves; Bonamigo, 2018).

Com o avanço das tecnologias da informação, novos desafios emergem no que diz respeito à proteção dos dados de saúde. O uso de sistemas eletrônicos demanda regulamentações específicas sobre quem pode acessar, registrar e armazenar informações, especialmente aquelas relativas a condições que envolvem preconceito social, como o HIV/Aids. Conforme estudos recentes, a ausência de políticas robustas e a fragilidade dos sistemas expõem os pacientes a riscos de violação de sua privacidade (Gonçalo et al., 2025). Dessa forma, torna-se urgente investir tanto em segurança digital quanto na formação ética e técnica dos profissionais (Salvadori; Hahn, 2019).

O sigilo no cuidado às PVHA não se limita ao cumprimento de um dever legal, mas constitui uma manifestação concreta de respeito a sua dignidade. Mais do que proteger informações, trata-se de garantir que os pacientes tenham acesso a um cuidado seguro, ético e livre de discriminação. Para isso, é necessário articular políticas públicas eficientes, qualificação contínua das equipes de saúde e sensibilidade para lidar com as vulnerabilidades sociais que atravessam esses indivíduos (Lins et al., 2022).

A prática ética dos profissionais de saúde diante de PVHA representa uma área de complexa responsabilidade, que envolve não apenas a aplicação de normas técnicas, mas também a interpretação crítica dos princípios bioéticos em situações de vulnerabilidade social. Desde a eclosão da epidemia, o estigma e a discriminação tornaram-se desafios éticos centrais, exigindo dos profissionais uma postura ativa de respeito à dignidade humana, à autonomia do paciente e à promoção da justiça social (Brasil, 2024; Unesco, 2005).

A confidencialidade das informações é um eixo fundamental nesse contexto. A quebra do sigilo, além de ferir direitos individuais, agrava o preconceito e compromete o acesso ao tratamento. Dessa forma, manter a privacidade do diagnóstico de HIV/Aids não é apenas uma exigência técnica, mas uma atitude de proteção à individualidade do paciente (Salvadori e Hahn, 2019. 

No entanto, o dilema ético surge em situações nas quais o direito à privacidade do paciente colide com o dever de prevenir danos a terceiros, exigindo do profissional um julgamento fundamentado de acordo com as particularidades de cada caso (Morais, L.S. et al, 2013). Assim, para que os profissionais de saúde atuem de forma ética no cuidado às PVHA, é necessário adotar uma perspectiva ampliada, em que o conhecimento técnico e as questões sociais se articulem na promoção de um cuidado transformador (Salvadori; Hahn, 2019).


Lei garante sigilo a portadores de HIV, hepatites, tuberculose e hanseníase. Fonte: Cofen.

A Lei 14.289/22 e a proteção de dados das Pessoas Vivendo com HIV/Aids

No ano de 2022 foi promulgada a lei 14.289/22 que torna obrigatório a preservação do sigilo, não só de PVHA, mas também para aqueles com Hepatites Crônicas (Hepatites B e C), Hanseníase e Tuberculose. De acordo com as regras estabelecidas, a confidencialidade torna-se exigível em diversos setores, englobando serviços de saúde, estabelecimentos de ensino, locais de trabalho, administração pública, segurança pública, processos judiciais e mídias escrita e audiovisual (Brasil, 2022a; Brasil, 2022b).

Em relação ao profissional da saúde, a quebra do sigilo só será permitida em situações autorizadas por lei, por motivo legítimo ou com o consentimento formal do paciente. Caso se trate de um menor, será necessária também a aprovação do seu representante legal. Caso haja quebra do sigilo, o profissional poderá estar sujeito às normas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), e deverá pagar uma multa, que será dobrada, já que é de obrigação da sua profissão preservar o sigilo do paciente (Brasil, 2022b).

Ademais, a lei de proteção  a dados  nº 13.709 de 14 de agosto de 2018 também assegura essa população, garantindo o respeito aos dados pessoais e de saúde dos indivíduos sob pena que variam de acordo com a gravidade.  A penalidade pode variar desde sanções administrativas até detenção de 1 a 6 meses  ou multa, por divulgar informações sigilosas sem justa causa; detenção de 1 a 4 anos, e multa, por divulgar informações sigilosas ou reservadas da Administração Pública sem justa causa; reclusão de 6 meses a 2 anos, e multa, por invasão que resulte na obtenção de informações sigilosas (BRASIL, 2014b). 

Está previsto na Lei nº 12.984/2014 que divulgar a sorologia de alguém sem autorização é crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa (BRASIL, 2014a). O responsável que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados, causar dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, é obrigado a repará-lo.

O sigilo das informações das PVHA, portanto, envolve vários grupos sociais, integrando desde a própria equipe multidisciplinar, que vai auxiliar no seu tratamento, até a sua família, trabalho e ciclo social. Em alguns casos, o sigilo pode proporcionar ao paciente um maior vínculo e segurança para com a equipe, bem como auxiliar na melhor adesão ao tratamento (Sciarotta et al, 2021).

Portanto, mesmo com o aporte da lei, muitos casos ainda ocorrem frequentemente. Espera-se uma postura íntegra da equipe de saúde frente aos dilemas vivenciados, que vai desde a realização de reuniões para discussão e esclarecimento de casos, até sugestões e críticas sobre a forma de tratamento e de orientações aos usuários. A conduta ética no acolhimento do usuário com respeito, sigilo profissional, privacidade e apoio ao paciente deve ser sempre priorizada para permitir um atendimento respaldado nos princípios da bioética (Joaquim et al, 2025). 

Dessa forma, as PVHA têm o direito de escolher manter seu diagnóstico em sigilo e essa opção deverá ser respeitada pelos profissionais de saúde e demais membros da sociedade. 


Sigilo no trato com pacientes de HIV/Aids é tema de estudo. Fonte: Unoeste.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 12.984, de 29 de abril de 2014. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 30 abr. 2014a. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12984.htm  . Acesso em: 08 abr. 2025


BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, 30 abr. 2014b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm.  Acesso em: 08 abr. 2025


BRASIL. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos. Brasília: Ministério da Saúde, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/central-de-conteudo/pcdts/pcdt_hiv_modulo_1_2024.pdf. Acesso em: 7 abr. 2025. 


BRASIL. Lei nº 14.289, de 3 de janeiro de 2022. Dispõe sobre a obrigatoriedade de manutenção do sigilo sobre a condição de saúde de pessoas com HIV, hepatites virais, hanseníase e tuberculose. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 4 jan. 2022a. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14289.htm. Acesso em: 5 abr. 2025.


BRASIL. Nova lei garante sigilo a pessoas vivendo com HIV, hepatites crônicas, tuberculose e hanseníase: Ministério da Saúde, 2022b.  Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/janeiro/nova-lei-garante-sigilo-a-portadores-de-hiv-hepatites-cronicas-tuberculose-e-hanseniase. Acesso em: 5 abr. 2025.


GONÇALO, W. et al.. Abordagens regulatórias na proteção de dados em saúde: uma revisão integrativa de 2018 a 2023. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 35, n. 1, p. e350113, 2025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/56MHDpw9hrMKXYzCWyB77Cp/. Acesso em: 6 abr. 2025.


JOAQUIM, J. G. et al.. Dilemas enfrentados pela equipe de enfermagem relacionada ao sigilo de informação sobre HIV/AIDS. Inova Saúde, v. 15, n. 2, p. 121–133, 2025. Disponível em: https://periodicos.unesc.net/ojs/index.php/Inovasaude/article/view/3086. Acesso em: 5 abr. 2025.


JUNGES, J. R. et al.. Sigilo e privacidade das informações sobre usuário nas equipes de atenção básica à saúde: revisão. Revista Bioética, v. 23, n. 1, p. 200–206, jan. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/PPXmgX7PYZtfWwYxMV8sSsv/. Acesso em: 6 abr. 2025.


LINS, G. A. N. et al.. Reflexões éticas na atenção à saúde de pacientes com HIV. Revista Bioética, v. 30, n. 3, p. 652–661, jul. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/7qSQDzcRwwdFXzBczpD7f7r/. Acesso em: 5 mar. 2025.

MORAIS, Leonardo Stoll de; FERNANDES, Natália Cepeda; GENRO, Bruna Pasqualini; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Revelação de diagnóstico de AIDS para terceiros: aspectos éticos, morais, legais e sociais. Revista HCPA, v. 33, n. 3-4, p. 279-285, 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/hcpa/article/view/44289. Acesso em: 7 abr. 2025.

OLIVEIRA, B. M. T.. Comunicação de HIV/AIDS ao paciente/parceiro (sigilo). Anais de Medicina, 2018. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/anaisdemedicina/article/view/15929. Acesso em: 6 abr. 2025.


SALVADORI, M.; HAHN, G. V.. Confidencialidade médica no cuidado ao paciente com HIV/AIDS. Revista Bioética, v. 27, n. 1, p. 153–163, jan. 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/KBgtFgrfLDC34KdxYHrxvhF/. Acesso em: 6 abr. 2025.

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SILVA JUNIOR, D. N.; ARAÚJO, J. L.; NASCIMENTO, E. G. C.. Privacidade e confidencialidade no contexto mundial de saúde: uma revisão integrativa. Revista Bioética y Derecho, Barcelona, n. 40, p. 195–214, 2017. Disponível em: https://scielo.isciii.es/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1886-58872017000200015. Acesso em: 6 abr. 2025.


UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Paris: UNESCO, 2005. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146180_por. Acesso em: 5 abr. 2025.


VILLAS-BÔAS, M. E. O direito-dever de sigilo na proteção ao paciente. Revista Bioética, v. 23, n. 3, p. 513–523, set. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/kFY5sjrzNCZYd3qVc5BLXDt/. Acesso em: 6 abr. 2025.


ZANCO, G.; GONÇALVES, M. E.; BONAMIGO, E. L.. Implicações do sigilo médico em caso de HIV positivo. Anais de Medicina, n. 1, p. 61–62, 2018. Disponível em: https://periodicos.unoesc.edu.br/anaisdemedicina/article/view/18825. Acesso em: 6 abr. 2025.


Eixo temático:

- Segurança do paciente e HIV/Aids.


Texto produzido por:

- JANUÁRIO, Maria Aline - Graduanda em Enfermagem (UFCG). Membro do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

- PEREIRA, Isis Vitória de Souza - Graduanda em Enfermagem (UFCG). Membro do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

- XAVIER, Heliene da Silveira - Graduanda em Enfermagem (UFCG). Membro do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

- OLÍMPIO, Talita Freitas de - Graduanda em Enfermagem (UFCG). Membro do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

- MONTEIRO, José Daniel da Silva - Enfermeiro (UFCG). Residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva pela Escola de Saúde Pública da Paraíba (ESP-PB). Membro e profissional colaborador do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

- FERNANDES, Petra Kelly Rabelo de Sousa - Enfermeira (UECE). Docente da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Membro e orientadora do Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (LATICS).

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