RIPs: da letalidade à perspectiva de utilização terapêutica

Em setembro de 1978 o jornalista da BBC e escritor Georgi Markov estava a caminho do trabalho, quando foi espetado na perna por um guarda-chuva carregado por um homem, tido como membro da KGB, serviço secreto soviético, que fugiu após o ataque. Markov ficou gravemente doente e foi hospitalizado, com um quadro grave de intoxicação, pulsação e temperaturas altas. Só após a autópsia foi identificada a substância que causou a morte do jornalista, a ricina, lectina presente na mamona, Ricinus communis L. (PAPALOUCAS et al., 2008).
(FONTE: http://luirig.altervista.org/cpm/albums/leo-m2/leo-mic-Ricinus-communis-741.jpg)
Pouco mais depois de um século após seu descobrimento, as lectinas continuam sendo amplamente estudadas, com grande importância científica e prática em diversos campos do conhecimento. O primeiro registro científico das lectinas é creditado a Peter Hermann Stillmark, que denominou ricina a proteína isolada de sementes de Ricinus communis L. em sua tese de doutoramento, em 1888. Posteriormente, Hellin e Kobert fizeram descobertas similares com sementes de Abrus precatorius, quando isolaram a abrina (PEUMANS & VAN DAMME, 1995; CHENG et al., 2010).

Estudos posteriores constataram que a incorporação de aminoácidos em uma suspensão de microssomos de ratos intoxicados por ricina era reduzida e que a síntese protéica era inibida fortemente tanto pela ricina como pela abrina (DIRHEIMER et al., 1968). Essas proteínas pertencem às RIPs (Ribosome-Inactivating-Proteins), classe de lectinas capazes de inativar ribossomos e consequentemente a síntese de proteínas. Existem dois tipos de RIPs, classificadas de acordo com suas características estruturais. As RIPs do tipo 1 são monoméricas e as do tipo 2 são diméricas (COOK; DAVID; GRIFFITHS, 2006).

Já são descritas diversas aplicações dessas proteínas, como por exemplo, sua utilização como ferramenta no auxílio do diagnóstico de doenças, no método de tipagem sanguínea, atividade antimicrobiana e inseticida, bem como a indução da resposta inflamatória com o recrutamento de células mononucleares e neutrófilos em camundongos (MOTA et al., 2016). O potencial de aplicações farmacológicas dessas proteínas tem estimulado a contínua investigação, isolamento e caracterização de novas lectinas (YIN; WONG; NG, 2015).

Em confronto com tais aplicações está o seu potencial tóxico para seres humanos e animais. A ingestão intencional ou acidental de plantas ou alimentos (folhas, caule, flores e sementes) que contêm essas proteínas pode desencadear um quadro variável de intoxicação, conforme o grau de exposição seja pela mastigação ou completa deglutição (ALEXANDER et al., 2008; TOKARNIA et al., 2012).

O levantamento de dados oriundos do DATASUS relativos às ocorrências de intoxicação alimentar no Brasil de 2007 a 2014 revela que a falta de investigação de episódios, a cobertura ineficiente dos serviços oficiais da Vigilância Sanitária de Alimentos, a subnotificação e a carência de informações aos consumidores são fatores que intensificam o aumento gradativo da incidência dos episódios de intoxicação alimentar (NEVES, 2015).

 O diagnóstico de intoxicação por RIPs é baseado na história clínica do consumo das plantas que as contêm, da observação de êmese contendo partes das plantas e da ocorrência de surto grave de doença gastrointestinal ou respiratória (ROELS et al., 2010 apud FONSECA; SOTO-BLANCO, 2014). Ensaio imunoenzimático (ELISA) e radioimunoensaio podem detectá-las no sangue e fluidos corpóreos (COOK; DAVID; GRIFFITHS, 2006; ROELS et al, 2010 apud FONSECA; SOTO-BLANCO, 2014). O quadro 1 ilustra uma tríade que subsidia episódios de intoxicação por lectinas. Normalmente, os sintomas se desenvolvem após 6 horas da ingestão, e a duração dos sinais geralmente varia de 1 a 5 dias (ALBRETSEN; GWALTNEY-BRANT; KAHN, 2000).
Não existem antídotos disponíveis no mercado para a intoxicação com RIPs. O tratamento é sintomático e de suporte e a indução do vômito, administração de carvão ativado, sucralfato, lavagem gástrica e dieta suave podem ser postas em práticas (GARLAND; BAILEY, 2006 apud FONSECA; SOTO-BLANCO, 2014), além de intensa fluidoterapia intravenosa e terapia eletrolítica (SOTO-BLANCO et al., 2002 apud FONSECA; SOTO-BLANCO, 2014). Estudos pré-clínicos já investigam a utilização de anticorpos monoclonais (REISLER; SMITH, 2012) e o uso de moléculas inibidoras de lectinas como medida de complementação do tratamento de quadros de intoxicação.

É fato que essas proteínas foram reconhecidas inicialmente por suas propriedades mortais, mas a utilização terapêutica das RIPs é promissora. Antes mesmo de seus mecanismos de ações terem sido elucidados, Mosinger demonstrou as propriedades anticancerígenas da ricina e da abrina sobre sarcomas em ratos, em 1951 e Reddy e Sirsi descreveram a inibição do crescimento de sarcomas de Yoshida pelo extrato protéico de Abrus precatorius em 1969, o que ilustra o quão promissoras são as lectinas como ferramentas moleculares que podem ser utilizadas para o benefício da humanidade.

Referências
ALBRETSEN, J. C.; GWALTNEY-BRANT, S. M.; KAHN, S. A. Evaluation of castor bean toxicosis in dogs: 98 cases. Journal of the American Animal Hospital Association, Lakewood, v. 36, p. 229-233, 2000.

ALEXANDER, J.; ANDERSSON, H. C.; BERNHOFT, A.; BRIMER, L.; COTTRILL, B.; FINK-GREMMELS, J.; JAROSZEWSKI, J.; SOERENSEN, H. Ricin (from Ricinus communis) as undesirable substances in animal feed: scientific opinion of the panel on contaminants in the food chain. European Food Safety Authority (EFSA) Journal, Parma, v. 726, p. 1-38, 2008.

CHENG, J.; LU, TH.; LIU, CL.; LIN, JY. A biophysical elucidation for less toxicity of Agglutinin than Abrin-a from the Seeds of Abrus Precatorius in consequence of crystal structure. Journal of Biomedical Science, p. 1-13, 2010.

COOK, D. L.; DAVID, J.; GRIFFITHS, G. D. Retrospective identification of ricin in animal tissues following administration by pulmonary and oral routes. Toxicology, Amsterdam, v. 223, n. 1-2, p. 61-70, 2006.

DIRHEIMER, G.; HAAS, F.; METAIS, P. Hépatonephrite expérimentale provoquée par la ricine. Hepatonephrites toxiques. Mason et cie., Paris, p. 45-50, 1968.

FONSECA, N. B. da S.; SOTO-BLANCO, B. Toxicidade da ricina presente nas sementes de mamona. Semina: Ciências Agrárias., Londrina, v. 35, n. 3, p. 1415-1424, Maio/Jun 2014.

KALAND, M.E. KLEIN-SCHWARTZ, W.; ANDERSON, B.D. Toxalbumin exposures:12 years' experience of U.S. poison centers. Toxicon, v. 99, p. 125-129, 2015.

MOTA, T. M.; SILVA, A. E. V. N.; FILHO, E. V. M.; SIQUEIRA, J. O.; FERREIRA, D. R. C.;  GROSCHKE, H. M.; BRAZ, R. S.; TEIXEIRA, M. W. Intoxication by Talisia esculenta seeds in a dog – case report. Clínica veterinária, v.21, p. 78-84, 2016.

NEVES, Millena Correia de Moraes. Data collection relating to occurrences / outbreaks of food poisoning in Brazil 2007-2014. 36f. 2015. Monograph (Undergraduate) –Pharmacy School, Federal University of Paraíba, João Pessoa, 2015.

PAPALOUCAS, M.; PAPALOUCAS, C.; STERGICULAS, A. Ricin and the Assassination of Georgi Markow. Pakistan Journal of Biological Sciences., v. 19, n. 11, p. 2370-2371, 2008.

PEUMANS, W. J.; VAN DAMME, E. J. M. Lectins as PIant Defense Proteins. Plant Physiol., v. 109, p. 347-352, 1995.

POVINELI, K. L.; FILHO, F. F. As multiplas funções das lectinas vegetais. Nutrire; Journal Brazilian Society Food Nutrition, São Paulo, v.24, p.135-156, Dez 2002.

REISLER, R. B.; SMITH, L. A. The need for continued development of ricin countermeasures. Advances in Preventive Medicine, Cairo, v. 2012, p. 1-4, 2012.

TOKARNIA, C. H.; BRITO, M. F.; BARBOSA, J. D.; PEIXOTO, P. V.; DÖBEREINER, J. Plantas tóxicas do Brasil para animais de produção. Helianthus, v. 12, p. 566-567, 2012.

YIN, C.; WONG, J. H.; NG, T. B. Isolation of a Hemagglutinin with Potent Antiproliferative Activity and a Large Antifungal Defensin from Phaseolus vulgaris cv. HOKKAIDO, L. P. B. Journal Agricultural Food Chemistry, v. 22, p.5439-5448, 2015.

Texto elaborado pelos Acadêmicos de Enfermagem Isadora Roberta, Pedro Tiago, Francley Gonçalves, Enfermeiro Rubens Félix, Prof. Dr. Eder Freire e pelos colaboradores: Francisco Kleber Fernandes Aurélio (Farmacêutico e Especialista em Química-UFC, Comendador do Mérito Farmacêutico - CFF), Raquel Fragoso Pereira (Farmacêutica pela UFPB, Servidora Técnico-administrativo da UFCG) e Aline Veras Aurélio (Farmacêutica e Especialista em Química-UFC, Especialista em Análises Clínicas - IBRAS, Comendadora do Mérito Farmacêutico - CFF).

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