DESAFIOS DA (DES)MEDICALIZAÇÃO NA INFÂNCIA: O FENÔMENO DA “RITALINA” PARA TDAH

 



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Ao pensarmos na medicalização da infância temos que contextualizar às condições sociais que infelizmente fazem parte deste mundo perverso em que as crianças são as maiores vítimas. Nesta sociedade centrada na produção material, individualista e fortemente marcada pelas diferenças econômicas e exclusão, o sucesso é sinônimo de bom desempenho individual, que desconsidera as condições da história de vida de cada indivíduo.

Às crianças cada vez mais adultizadas, deixam a infância para trás e entram nesta lógica da sociedade mercantil. O número que crianças que usam medicamentos para melhorar o seu desempenho escolar é exponencialmente crescente. Perguntamo-nos se realmente os diagnósticos, principalmente de Transtorno Déficit Atenção e Hiperatividade (TDAH) - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11 6A05) - estão sendo realizados por uma equipe interdisciplinar ou se popularizou de tal maneira visto como natural? A culpabilização do(a) aluno(a) pelo não aprender é outro problema que nos causa angústia. Será que a escola e a sociedade está se dando conta disso?

Thomas Armstrong em seu livro “The myth of the adhd child”, publicado lá em 1997, alertava para a seguinte afirmação: “Porque desinformação, falta de raciocínio científico e ingenuidade constituem uma mistura perigosa”[1] Para este autor, chamar crianças nervosas, distraídas, esquecidas, impulsivas ou desorganizadas é uma série de coisas misturadas sob esse rótulo simplista.

Alguns pesquisadores como, Canino e Alegria no Journal of Child Psychology and Psychiatry de março de 2018, por exemplo, revisaram inúmeros estudos e sugeriram que “a prevalência e características limiares do que é considerado um sintoma patológico do TDAH variam em diferentes culturas”[2]

Os sintomas do TDAH são prevalecentes nas escolas e não em outros ambientes. A questão, portanto, permanece. Por que estas variações dos sintomas em diferentes ambientes? Se o TDAH é um transtorno deveria aparecer em vários ambientes e não apenas na escola. O que isso sugere? Isso sugere que precisamos encontrar tempo todos os dias para que essas crianças se envolvam em atividades de aprendizado ao ar livre e menos tempo sentadas em salas de aula tediosas. Devemos “arrumar” a criança ou o ambiente? Os defensores do TDAH parecem pensar que seja melhor medicar as crianças a mudar o tipo de ambiente. Nós discordamos.

As principais consequências de um diagnóstico impreciso é rotular estas crianças, utilizar medicamentos sem necessidade em quadros não orgânicos, desgastar a família; consultar profissionais “especializados” sem critérios mais rígidos e procurar tratamentos sem comprovação de efetividade.

Para Figueiredo (2014), a medicação é vista como necessária e útil, em alguns momentos, porque a medicalização pode manifestar-se como uma fantasia inconsciente e socialmente difundida. Esta fantasia da medicalização difunde a crença de que o medicamento livra o sujeito rapidamente de seu sofrimento, de maneira fácil, sem dor e sem trabalho.

No artigo - A criança entre a medicalização e o brincar: o lúdico como estratégia de inclusão (ANDRADE, SOUZA & SOUZA, 2016)[3], os autores atentam para o fato que as crianças estão deixando de brincar e que as brincadeiras acabam por se resumir ao uso de celulares.

Há uma preocupante constatação de que o Brasil é o segundo mercado consumidor Mundial de METILFENIDATO, medicamento conhecido pelos nomes comerciais de “ritalina” e “concerta”, sendo que a venda deste medicamento aumentou em 775% na última década. ( ITABORAHY, C., & ORTEGA, F, 2013)

O Ministério da Saúde, em outubro de 2015, enviou algumas recomendações para o Ministério da Educação (MEC), dentre elas:

1. Encaminhado aos sistemas de ensino as recomendações para adoção de práticas não medicalizantes e para a adoção de protocolos estaduais e municipais de dispensação do metilfenidato na perspectiva de prevenir e combater a excessiva medicalização de crianças e adolescentes.

2. A implementação das Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos, que aponta para a construção de uma educação que valorize as diferenças e reconheça os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sejam eles individuais ou coletivos, no sentido de promover a igualdade e a garantia da dignidade humana, o que, na prática, não se tem cumprido. 3. Evitar que situações de natureza pedagógica/social sejam confundidas com distúrbios, transtornos e doenças. (ANDRADE et al, 2018)[4].

Vamos então ver na bula do medicamento Ritalina suas prescrições.

 

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Ritalina é “um estimulante do sistema nervoso central”.

1) Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças “não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central.” (Ritalina, Farmacodinâmica).

2) “Não deve ser utilizado em crianças com menos de seis anos, uma vez que a segurança e a eficácia nesse grupo etário não foram estabelecidas” (Ritalina, Advertências da Ritalina)

3) Além disso, afirma que embora não tenha sido ainda confirmada uma relação causal, tem sido relatada (sic) uma moderada redução no ganho de peso e um ligeiro retardo no crescimento com o uso prolongado de estimulantes em crianças. Isso é normalmente acompanhado por uma retomada do crescimento quando o medicamento é descontinuado.

4) Para “minimizar tais complicações”: “períodos sem o medicamento, especialmente durante os finais de semana e nas férias escolares” e em letras garrafais, que o medicamento “PODE CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA”.

Estas informações no remete a refletir que o disciplinamento da criança sempre se deu por meio do corpo. Antes fazia-se o uso de disciplinamento corporal e punição corporal com castigos físicos e agora “evoluímos”, porque há um medicamento milagroso para “conter” as crianças.

A modelagem dos corpos atribui um caráter de docilidade, tornando o corpo útil e produtivo ao aumentar sua submissão e obediência. Seria, portanto, uma política de coerções, uma ideologia calculada no detalhe que tem como finalidade o controle e modelagem de atitudes, gestos e comportamentos.

Foucault (2006) afirma que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (p. 126). O autor esclarece que micropoderes atravessam todo o corpo social, acarretando transformações e modificações de condutas nos indivíduos. O corpo social, ao longo dos séculos, se consolida como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização.

Será que é isso que queremos para as nossas crianças? Pensamos que não. Portanto, há de se ter muito cuidado com a patologização da infância. A patologização “(...) consiste na busca de causas e soluções médicas, ao nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social” (COLLARES & MOYSÉS, 1986, apud LUENGO & CONSTANTINO, 2005, p.123).

Precisamos repensar a escola e a sociedade criticamente, considerando o contexto social e institucional que implicam a produção de determinados comportamentos na criança. Só medicalizá-las não é a solução para tais problemas e desafios.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA MSC, SOUSA- FILHO LF, RABELO PM, SANTIAGO BM. Classificação Internacional das Doenças - 11ª revisão: da concepção à implementação. Rev Saude Publica. 2020.

ANDRADE, S. et al. Ritalina®, uma droga que ameaça a inteligência. [S. l.], v. 7, n. 1, 2018. Revista de Medicina e Saúde de Brasília, 2018, 7.1. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rmsbr/article/view/8810. Acesso em: 13 agosto 2020.

CANINO G, ALEGRIA M. Psychiatric diagnosis – is it universal or relative to culture? Journal of Child Psychology and Psychiatry 49, 2008, 237–250.

FIGUEIREDO, L. C. M. A fantasia de medicalização: Suas origens, sua força e suas implicações. In: MENEZES, L. S. de.; ARMANDO, G. G.; VIEIRA, P., (orgs.). Medicação ou Medicalização? São Paulo: Primavera Editorial, 2014.

FOUCAULT, M. (2006). O poder psiquiátrico São Paulo: Martins Fontes.

ITABORAHY, C., & ORTEGA, F. O metifenidato no Brasil: uma década de publicações. Ciência & Saúde Coletiva, 18(3), 2013. 803-816. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013000300026

LUENGO, F. C; CONSTANTINO, E. P. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. Revista de Psicologia da Unesp, v.8, n.2, p. 122-126, 2009.

 

Texto elaborado pela Linha de Pesquisa: Tecnologias Cuidativo-Educacionais: Interlocuções na Saúde, Formação e Educação.

Eixo temático: Educação e Saúde Psíquica Infanto-Juvenil.                 

Coordenadora: Dra. Silvia Carla Conceição Massagli. 

(Docente da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) - Laranjeiras do Sul).               

Orientandas(os): Gabrielle Klein, Isadora Klein, Júlia Zanini e Nicolas Antonio Ferreira Morigi (Acadêmicas(os) da UFFS - Laranjeiras do Sul – Curso Pedagogia).

 


[1] http://www.thomasarmstrong.com/articles/add_myth.php

[2] http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3104469/

[3]https://www.editorarealize.com.br/editora/anais/cintedi/2016/TRABALHO_EV060_MD1_SA5_ID3898_23102016175548.pdf

[4] https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rmsbr/article/view/8810

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