Políticas Públicas em Saúde: Primeiras ações para a sua Construção

As atuais políticas públicas de saúde no Brasil são reflexos de acontecimentos históricos que alicerçaram o sistema de saúde vigente. Entender o motivo e as circunstâncias que levaram o país a adotar ações específicas, em determinados contextos, oferece subsídios para que haja a compreensão dos principais avanços e obstáculos ainda enfrentados na atualidade.
A exploração adotada no período colonial contribui para a inexistência de assistência à saúde no Brasil nesta época. Esta assistência era subsidiada apenas por ervas e cantos, produzidos pelos pajés e por boticários (INDRIUNAS, 2008). O cenário foi marcado por doenças pestilenciais, uma vez que o desmatamento provocado pelas explorações proporcionava a emersão de vetores causadores dessas enfermidades.

O panorama agrário-extrativista não dispunha de nenhum modelo específico de atenção à saúde, provocando a ausência de saneamento básico na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, com a vinda da família real, em 1808, surge a necessidade da criação de uma pequena estrutura sanitária nessa cidade.

As únicas medidas governamentais adotadas pela corte até a República foram: a construção do Colégio Médico-Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador e a criação da Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, sendo essas, as primeiras escolas de medicina do Brasil (INDRIUNAS, 2008).

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por um grande crescimento econômico (LIMA, 2009). No entanto, esse período apresentava-se em crise, principalmente no que se refere às condições sanitárias. Epidemias como a febre amarela punham em risco a agro-exportação brasileira, já que os navios estrangeiros rejeitavam aportar em solo brasileiro, reduzindo também a imigração da mão-de-obra.

Entre o Império do Brasil, as repúblicas Argentina, Oriental do Uruguai, e Paraguai, um pouco mais tarde, foi promulgada a Convenção Sanitária celebrada, em 22 de agosto de 1889, por meio do decreto n.10.318, que definia questões a respeito de quais doenças se concentrariam notas sanitárias nos portos. Foi deliberado que as medidas sanitárias seriam norteadas às categorias criadas durante uma das conferências de "moléstias pestilenciais exóticas", nelas inseridas a febre amarela, o cólera-morbo e a peste oriental (BRASIL, 1889).

O modo diversificado de estratégias utilizadas na luta contra a febre amarela foi retificado quando Oswaldo Cruz assume a direção da Saúde Pública, em 1903, focalizando as ações nos vetores da febre amarela e da peste bubônica, e enfatizando a utilização da vacinação contra a varíola. (BENCHIMOL, 1999).

Sendo assim, a regulamentação sanitária vigente no Brasil em 1904 priorizava o saneamento do ambiente, dos portos e da cidade, objetivando implementar nesses locais fortes barreiras às infecções. A substituição da quarentena, que era amplamente utilizada neste período, estava condicionada à necessidade de um contingente maior de recursos humanos capacitados para vacinar e seguir os passageiros em vigilância. Além disso, a reorganização da cidade e do porto, no sentido de eliminar os locais entendidos como focos e epidemias: cortiços e locais com aglomeração de pessoas, consistiam em fatores primordiais para a substituição deste método (REBELO, 2013).

Percebe-se assim, que a atenção do governo começou a se focalizar de forma estratégica nos portos e estradas, onde havia uma comunicação intensa dos trabalhadores brasileiros com os estrangeiros que estavam envolvidos em atividades de exportação e importação de mercadorias. Nessa conjuntura, o olhar assistencial começou a surgir a partir da ameaça à política de agro-exportação brasileira, demonstrando dessa forma, a valorização das necessidades mercantis, em detrimento de um modelo de atenção à saúde que visasse satisfazer o empoderamento daqueles indivíduos.

Rodrigues Alves foi nomeado presidente da República em 1902 e realçou o empenho de seu governo para com a necessidade de estratégias de saneamento da capital (BENCHIMOL, 1990). A execução da reforma urbana foi subsidiada pela nomeação do engenheiro Francisco Pereira Passos, e pela instituição do responsável para a coordenação da reforma sanitária, o médico Oswaldo Gonçalves Cruz. Esses coordenadores dispunham de poderes quase ditatoriais para a pragmatização das reformas, que iniciaram em 1903 (CARVALHO, 2000).

A linha biologicista que adentra a mentalidade dos profissionais de saúde nesse período expõe que a causa do processo saúde-doença está relacionada à existência de microorganismos que por si só constituíam a causa do desenvolvimento de determinada enfermidade. Essa concepção “reaviva” o mecanicismo da causalidade saúde-doença, corroborando para que a doença fosse vista como um desequilíbrio das relações entre indivíduo, microorganismo e meio ambiente.

Sendo assim, o discurso biologicista implica na redução da determinação do processo saúde-doença à dimensão individual, não articulando as políticas sociais e as condições do meio à saúde. A ideia refere que o adoecimento decorre do não cumprimento das normas de higienização pelos sujeitos e que a simples execução de comportamentos individuais garante a resolutividade dos problemas de saúde enfrentados pela população. Esse discurso se disseminou de forma preponderante durante décadas, e ainda hoje pode ser encontrado, inclusive em práticas educativas (ALVES, 2005).

No processo de formação dos profissionais de saúde, esse discurso ganha força aliado às metodologias tradicionais, que valorizam o mecanicismo de inspiração cartesiana, fragmentada e reducionista, em detrimento de práticas holistas, que fomentem o cuidado humanizado em saúde. Por conseguinte, as instituições de ensino que adotam essa metodologia acabam formando profissionais com atitudes passivas, e até mesmo alienadas da realidade, tornando-os meros expectadores, sem a necessária crítica e reflexão exigida para se trabalhar os modelos de saúde atuais que abordam o humanismo e a integralidade como fatores norteadores desse processo.

Embora tenha sofrido grande oposição da mídia e da população, Oswaldo Cruz foi o responsável pelo saneamento e pela estruturação da saúde pública no Brasil. A população revoltou-se contra as estratégias de saneamento, e sobretudo com a remodelação urbana feita pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906), que almejando combater as epidemias, decidiu demolir cortiços e casebres. Essa população refugiou-se em morros e periferia, surgindo assim as favelas. Nessa conjuntura, Oswaldo Cruz assumia a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), cargo atualmente equivalente ao de Ministro da Saúde. A reforma da cidade ficou conhecida como “Bota Abaixo”, e enquanto ela acontecia, Oswaldo Cruz implantava métodos revolucionários para combater as doenças da época. (PORTO, 2003)

O acontecimento de surtos de peste esteve relacionado à importação de alfafa e trigo da Argentina, em um primeiro momento foram registrados no porto de Santos e logo mais nas localidades adjacentes às estradas de ferro Santos Jundiaí, incluindo a capital. Os armazéns para estocagem de grãos consistiam os locais de casos que foram registrados em São Paulo. Em 1908 a peste surge em Iguape em decorrência de um surto que iniciou no porto de Paranaguá (PIZA, 1964).

Embora o modelo sanitarista campanhista tenha sido alvo de muitas críticas, obteve resultados positivos no que diz respeito ao controle das doenças pestilenciais. As medidas tomadas obtinham um caráter vertical, sem a necessária sensibilização da comunidade a respeito das ações tomadas, levando os sujeitos a se sentirem ameaçados, e consequentemente, fazendo surgir várias revoltas.

Devido uma epidemia de varíola ocorrida em 1904, Oswaldo Cruz dirige para o Congresso uma lei que tornava a vacinação obrigatória, essa já havia sido estabelecida em 1837, mas não fora cumprida. O militarismo de sua campanha dividiu a cidade em distritos, criando uma polícia sanitária.  As brigadas sanitárias adentravam as casas e vacinavam as pessoas forçadamente. O temor da população era expresso pela imprensa, ridicularizando o autoritarismo de Oswaldo Cruz. Por conseguinte, em 11 de novembro de 1904 explode a “Revolta da Vacina”, que durou uma semana, reproduzindo uma verdadeira guerra civil. De acordo com a polícia houve 23 mortes e 67 feridos, 945 pessoas foram presas, e metade destas foi deportada para o Acre, sendo submetidas a trabalhos forçados (PORTO, 2003).

O modelo de atenção à saúde sanitarista-campanhista adotado por Oswaldo Cruz em um caráter autoritário e militar reflete uma negligência no que diz respeito ao esclarecimento da população sobre aquele contexto. O processo de modernização da saúde pública esteve centrado nas “mentes pensantes”, fazendo com que o povo fosse considerado ignorante e retrógrado às inovações pelo fato de se revoltarem contra a vacinação. Esse conflito vem reforçar a ideia de que apenas a transmissão da informação não é suficiente para educação comunitária, sendo necessária, portanto, uma sensibilização dos sujeitos, para que dessa forma haja a compreensão profunda dos porquês de determinadas medidas serem adotadas, características essas que ainda são presentas em algumas medidas de saúde em nosso cotidiano.

Referências
ALVES, Vânia S. A health education model for the Family Health Program: towards comprehensive health care and model reorientation, Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.39-52, set.2004/fev.2005.

BENCHIMOL, Jaime L. Manguinhos do sonho à vida: a ciência na Belle Époque. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. 1990.

BENCHIMOL, Jaime Larrry. Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 1999.

BRASIL. Decreto n.10.319, de 22 de agosto de 1889. Manda executar o Regulamento Sanitário Internacional para a execução da Convenção Sanitária celebrada entre o Brasil, a República Argentina e a República Oriental do Uruguai. Disponível em: http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:decreto:1889-08-22;10319. Acesso em: 01 set. 2014. 22 ago. 1889.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.    

CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Testamento. In: Opera Omnia, Rio de Janeiro, 1972, p.740-74.

FIOCRUZ. Testamento Oswaldo Gonçalves Cruz 1872-1917. Créditos: Projeto grá­co - Mara Lemos Pinhão/SCV/Icict/Fiocruz. Colaboração (pesquisa histórica) - Alexandre Medeiros/Biblioteca/ENSP/Fiocruz. Disponível em: http://www.labdigital.icict.fiocruz.br/obras_pdf/cruz_oswaldo_testamento.pdf

INDRIUNAS, Luís. História da saúde pública no Brasil. Disponível em:
<http://pessoas.hsw.uol.com.br/historia-da-saude.htm> Acesso em: 31.08.2014.

LIMA, MJO. As empresas familiares da cidade de Franca: um estudo sob a visão do
serviço social [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 240 p. ISBN 978-85-7983-037-2. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

PIZA, J. T. Esboço histórico da incidência de algumas moléstias infectuosas agudas em São Paulo. Arquivos de Higiene e Saúde Pública, v. 29, n. 99, p. 7-46, 1964.

PORTO, Mayla Yara. Uma revolta popular contra a vacinação. Cienc. Cult.,  São Paulo,  v. 55,  n. 1,  Jan.  2003.   Available from <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252003000100032&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Sept.  2014.

REBELO, Fernanda. Entre o Carlo R. e o Orleannais: a saúde pública e a profilaxia marítima no relato de dois casos de navios de imigrantes no porto do Rio de Janeiro, 1893-1907. Hist. cienc. saude-Manguinhos,  Rio de Janeiro ,  v. 20, n. 3, Sept.  2013 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702013000300765&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Sept.  2014.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-597020130003000003.

Texto elaborado pela Acadêmica de Enfermagem Paloma Gurgel e pelo Professor Me. Marcelo Costa

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