Bioquímica da raiva: o que há por trás dos impulsos de ataque?

“Aprendi através da experiência amarga a suprema lição: controlar minha raiva e torná-la como o calor que é convertido em energia. Nossa raiva controlada pode ser convertida numa força capaz de mover o mundo.”
Mahatma Gandhi

Muito se almeja ter a nobreza espiritual de Gandhi, que nesse pensamento expressa a capacidade de abstrair uma das emoções humanas mais difíceis de controlar: a raiva. Todos nós já ouvimos falar de alguém que “perdeu a razão” e acabou agindo de forma inadequada em momentos de raiva. Mas, quais seriam os mecanismos responsáveis por esses comportamentos?
A evolução trouxe consigo mecanismos neurobiológicos que podem explicar esse fato. Além de existir um componente subjetivo nesse processo, há também as manifestações fisiológicas, que tanto nos homens quanto nos animais são semelhantes.

Davidoff (1983, p. 451) define a “raiva como uma emoção caracterizada por um alto nível de atividades do sistema nervoso simpático e por fortes sentimentos de desprazer, os quais são desencadeados por um mal real ou imaginário”. Essas manifestações são decorrentes da ativação – ou hiperativação - do sistema nervoso autônomo simpático (SNS), responsável pelos mecanismos de “luta ou fuga”, que são ativados em situações de perigo, a fim de defender o organismo da ameaça em questão. Essa ativação está envolvida com a liberação de catecolaminas que geram taquicardia (aumento da frequência cardíaca), culminando no aumento da pressão sanguínea.

As catecolaminas (norepinefrina, epinefrina e dopamina) interagem com seus receptores de membrana específicos (a, b, e dopa), da superfície externa da membrana plasmática das células-alvo. Geralmente elas exercem seus efeitos por meio da alteração da permeabilidade da membrana, resultando em um aumento do cálcio intracelular, ou pela ativação de determinadas enzimas, tais como as adenililciclase, produzindo AMPc e a guanililciclase, produzindo GMPc.

AMPc e GMPc são moléculas chamadas de segundos mensageiros. O AMPc ativa alostericamente a proteína-cinase dependente de AMPc (PKA), que catalisa a fosforilação de resíduos de Ser ou Thr em proteínas-alvo. Já o GMPc ativa a proteína-cinase dependente de GMPc (PKG), que também fosforila resíduos de Ser e Thr em proteínas-alvo. A fosforilação dessas proteínas-alvo é responsável pela alteração de diversas atividades metabólicas na célula (NELSON & COX, 2014). As catecolaminas são transportadas de forma livre pela corrente sanguínea e apresentam um mecanismo de ação rápido, de minutos a segundos (GONZALEZ & CERONI, 2006).

Além disso, para preparar o organismo para lutar ou fugir, o SNS aumenta a dilatação dos vasos sanguíneos dos músculos, gerando um maior fluxo de energia e oxigênio nas fibras musculares. Concomitantemente, há a contração dos vasos do trato gastro-intestinal (TGI) e da pele, levando mais sangue para os músculos esqueléticos. Isso explica a palidez no rosto de indivíduos em momentos de medo ou raiva.

Mas calma, nada é tão fora do controle assim. O cortéx pré-frontal, região do cérebro localizada atrás da testa, é responsável por filtrar essas emoções, mantendo-as sob controle. Dessa maneira, Kakumoto, 2013 afirma: “obter o controle sobre sua raiva significa aprender maneiras de ajudar seu córtex pré-frontal a obter a vantagem sobre a sua amígdala para que você tenha controle sobre como você reage aos sentimentos de raiva.”

Outras regiões envolvidas nesse processo são alguns núcleos do hipotálamo que participam do controle neuroendócrino. Isso corrobora com as observações de diversas pesquisas de que a agressividade é fortemente influenciada por fatores hormonais (PETERSON & HARMON-JONES, 2012). Explica também o fato de animais machos serem geralmente mais agressivos que as fêmeas, já que esse controle hormonal relaciona-se aos níveis circulantes de testosterona, um andrógeno predominante nos machos.

A testosterona faz parte de um conjunto de biomoléculas chamadas de hormônios esteróides (hormônios adrenocorticais e sexuais). Esses hormônios são sintetizados em tecidos endócrinos a partir do colesterol e deslocam-se para suas células-alvo na corrente sanguínea por meio de carreadores protéicos. Todos os hormônios esteróides agem por meio de receptores nucleares, alterando a expressão de genes específicos. No entanto, podem ter efeitos rápidos mediados por receptores de membrana.
Colesterol como precursor da biossíntese de hormônios esteróides.

Sendo assim, no sentido de atingirmos a nobreza espiritual de Gandhi, busquemos utilizar mais do nosso córtex pré-frontal, para que possamos canalizar a energia da raiva em uma “força capaz de mover o mundo”. Logo, temos muito a aprender sobre a raiva e muita raiva para controlar.
               
Referências
BEAR, M.F; CONNORS, B.W; PARADISO M. A. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2002. 

DAVIDOFF, L. Introdução à psicologia. São Paulo: Makron Books, 1983.

GONZALEZ, F. H., CERONI da SILVA, S. Bioquímica hormonal. In: Introdução à bioquímica hormonal. 2.ed. Porto Alegre (RS): Editora da UFRGS. 2006.

NELSON, D. L., COX, M. M. Lehninger Princípios de Bioquímica. 6º ed. Editora Artmed, Porto Alegre, 2014.

KAKUMOTO, Marília. A Bioquímica e a Neurobiologia da Raiva. 2 de fevereiro de 2013. Disponível em: http://neurocienciaspt.blogspot.com.br/2013/02/a-bioquimica-e-neurobiologia-da-raiva.html. Acesso em novembro de 2015.

PETERSON, Carly K.; HARMON-JONES, Eddie. Anger and testosterone: Evidence that situationally-induced anger relates to situationally-induced testosterone. Emotion, Vol 12 n. 5, 2012. 

Texto elaborado pela Acadêmica de Enfermagem Paloma Gurgel e pelo Professor Dr. Éder Freire.

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